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PALAVRAS27

A sombra do homem

Quando, num sono aéreo, tudo dorme, 
E a treva lembra luz adormecida… 
E o silêncio, quimérico e disforme, 
É só uma canção interrompida… 

Quando um pinheiro, além, na indecisão 
Da noite, que o perturba e lhe faz mal, 
Se vê, perdido em vaga confusão, 
Tornar-se um ermo e vago pinheiral; 

Quando, na sombra espessa, ó minha fonte, 
Desliza, anseio de água, a tua voz, 
De som molhando o rosto do horizonte, 
Que sofre e chora, às vezes, como nós… 

Quando em paz tudo dorme, eu sonho e cismo. 
Remorso? Exaltação? Delírio a arder? 
E ouço vozes, que vêm dum fundo abismo, 
Por minhas mãos, aberto no meu ser! 

E ouço vozes e passos… Quem me fala? 
És tu, ó chuva? ó vento? ou serei eu? 
Ah, como distinguir a minha fala, 
Das vozes que andam, tristes, pelo céu! 

Já de tanto sentir a Natureza, 
De tanto a amar, com ela me confundo! 
E agora, quem sou eu? Nesta incerteza, 
Chamo por mim. Quem me responde? O mundo. 

Chamo por mim; e a estrela me responde. 
Chamo, de novo; e diz o mar: quem chama? 
E diz-me a flor: onde é que estás? aonde? 
Vede a sorte terrível de quem ama! 

Quem é somente amor desaparece; 
Deixa, para ser tudo, de existir. 
Por isso, enquanto o Amor nos entristece, 
Tudo, em volta de nós, está a sorrir… 

Qual é a tua alegria, ó Criação? 
A dor da criatura. E sendo assim, 
A alegria do nosso coração 
É a dor universal que não tem fim! 

Viver, é receber a vida alheia; 
Mas quem falece, entrega a própria vida. 
E, para que dê luz minha candeia, 
Quanta gota de azeite consumida! 

E Deus se exalta e vivifica, em nós; 
E nós, em Deus, morremos, por amor. 
O silêncio divino é a minha voz, 
A alegria divina é a minha dor! 

Ó Deus, tu és, em mim, fragilidade; 
Sombra que, por encanto, surge e passa… 
E nele, sou profunda Eternidade, 
Êxtase, Beatitude, Enlevo e Graça! 

Orar, é a gente ver a Deus, em si, 
E ver-se a gente, em Deus. Nessa visão, 
Homens da terra, os olhos consumi! 
A esse fogo deitai o coração! 

Ah! cada cousa humilde ou criatura, 
É a lenha que conserva, sempre acesa, 
A fogueira de Deus, na noite escura 
E gélida e sem fim da Natureza!